quarta-feira, 11 de março de 2009

Ela desatinou...

Para Carola, para a mulher das muitas melodias, a dança da vida para além dos passos na avenida

Ela acordou com o despertador. Do sonho, restou a frase: "se você virar um caco, eu faço mosaico de você".
Como de costume, desligou o despertador, virou para o outro lado e dormiu por mais meia hora. Levantou. Foi arrastando-se até o chuveiro. Sentir a água cair por seu corpo era seu único prazer diário. Vestida de ombros encurvados e óculos escuros seguiu para o trabalho. Lá, ria da mesma piada repetitiva, esforçava-se somente o necessário e entupia-se de café. Mas não naquele dia. A frase a perseguia.

Á noite, não conseguiu dormir. Seu corpo exalava uma mudança que não compreendia. Foi em direção ao espelho, hesitou...Ela sabia que não veria apenas uma imagem, a sua, era bem mais do que isso. Na verdade, ela nunca quis enxergar o que sempre esteve diante de seus olhos. Com a voz fina, quase um arrepio, disse: "eu sou um caco".
Ligou o chuveiro, no primeiro toque d’água morna em seu corpo, fechou os olhos. Nua, caminhou até a sacada e se lançou ao nada. Seu corpo espatifou-se tão violentamente que voltou a levitar, antes que tocasse definitivamente o chão transformando-se em espelhos de vários tamanhos.

Era terça de carnaval e, no meio da bagunça, ninguém reparou na moça que se jogou do prédio. A Escola do bairro, que mais parecia um bloco, se aproximava. A porta- bandeira tremeu quando viu todos aqueles cacos espalhados pela rua, um escorregão, um erro. Seria fatal. O mestre sala segurou firme em sua mão e curvou-se. Ela arqueou o corpo, fixou seus olhos no infinito e rodou, brilhou, balançou a saia pra-lá-de-rodada. E, ao fim, com os olhos lacrimejados beijou a bandeira da Escola.
Há quem chorou, suspirou, parou e cantou mais forte o samba enredo.Todos sambaram sobres o cacos, muitos cortaram-se, mas o sangue quente impediu a dor.
Pedrinho esperou todos passarem e começou a pegar os poucos pedaços que sobraram do espelho. A moça amarga da janela da frente, que mais parecia um natureza morta, esbravejou: "Ô menino, o que você vai fazer com esses cacos?". Antes que Pedrinho explicasse, completou: "cerol, não é? Você não sabe que isso mata pessoas? Os motoqueiros vivem sendo degolados. Culpa de meninos como você, me dá isso já!!" Enquanto a moça foi em direção à porta, Pedrinho tratou de esconder um pedaço do espelho no bolso, resmungando explicou: "eu não vou machucar ninguém, não. Eu só empino na pracinha e o cerol é porque eu gosto de ver as pipas dos outros ou a minha mesmo, dependo da sorte, voar pelo mar que é o céu, feito barco de papel".
Mariana, esse era o nome da moça amarga, tomou das mãos do menino os cacos que restaram e ordenou: "pare com essa conversa mole e vá pra casa. É um absurdo criança ficar na rua até tão tarde ". Pedrinho fez cara de sério, mas logo saiu dando pulinhos de alegria.
Ao fechar a janela, Mariana, viu a Escola virar a esquina, no fim da rua. Olhou para o espelho, buscou no bolso da saia algo perdido, abriu o batom vermelho envelhecido e, com cuidado, pintou os lábios. Soltou os cabelos, desbotoou dois botões da camisa e saiu faceira atrás da escola. Um vento forte soprou e levantou a sua saia, sem que ela se desse conta.
O Gari, que varria a rua, sorriu malicioso e cantarolou o samba enredo:
“Ela desatinou, viu quarta-feira chegar
Acabar brincadeira, bandeiras se desmanchando
E ela inda está sambando
Ela desatinou, viu morrer alegrias, rasgar fantasias
Os dias sem sol raiando e ela inda está sambando..."

8 comentários:

Anônimo disse...

O texto é lindo!!!...aliás, sou prova que a Carola faz dessas coisas...ilumina o espatifado caco até transformá-lo em espelho, daqueles que um dia conseguem refletir a beleza esquecida de quem passa pela rua, ou pela avenida...movimenta a vida das pessoas ao ritmo de um samba que nunca acaba...

Mill disse...

De caco em caco que passa desapercebido, de cerol em cerol que corta e apara, de garis em garis, vamos todos passando "QUASE" desapercebidos

lindo texto hermana

beijo

Anônimo disse...

oi,
indiquei seu blog para o Prêmio Selo Dardos de Reconhecimento.
+ info: www.anos60.wordpress.com
um abraço,
edi cavalcante

Unknown disse...

que lindo claudiana...que linda que você é!!! que bom que estamos aqui pra nós mexer, para mudar, para tocar e sentir aos outros, ne?
te adoro
bjs

Anônimo disse...

Até a metade era eu... rs - belo texto Clau.

Vanessa disse...

A-d-o-r-e-i!

Anônimo disse...

Olá lindona, adorei o texto, triste...poético...muito bom !! bjs

marcia disse...

parabéns!!!!!!!!!