sexta-feira, 22 de maio de 2009

Abaporu

Amélia tem 81 anos, mora com a filha há dois, divorciada há quarenta e sete anos. Sabe que pouco resta do que viver, sem lágrimas ou penar – sabe que muito já viveu, detesta essa ode de vida eterna e os empenhos científicos para a "cura" dos radicais livres. Amélia é do tempo em que se comia manteiga Aviação no café e que os casamentos duravam até que a morte os separem. Mas o dela foi diferente. Ela surpreendeu a família e os amigos ao pedir a separação. Pedro era do tempo que se andava de carrinho de rolemã nas ruas da Vila Mariana e que o presente ideal, do garoto de quinze anos, era o ingresso para o melhor puteiro da cidade.
Pedro e Amélia casaram-se por amor, com toda a pompa e circunstância. Isso significou: vestido branco e noiva casta, mas não obtusa. Noivo de barba feita e flor na lapela.
Para a família, o que ficou foram as fotos, uma delas, serve de decoração na casa de um dos netos, como se fosse “bibelot” na entrada. Pedro e Amélia mantêm relações amistosas, bem diferentes do casamento. Nunca encenaram cenas de ciúmes e brigas sem sentido. As brigas eram cerradas por olhares duros. Amélia, sempre foi uma mulher à frente de seu tempo, mas nunca fez estardalhaço disso. Acompanhava de longe as escapadas do marido e doía aos seus ouvidos os aplausos da sociedade. Era como se todo seu amor estivesse em uma ampulheta, e fosse se esvaindo para o outro lado, o seu lado “mulher”. Até que um dia, ela pediu que Pedro fosse embora de casa. Pedro não questionou. Embora sem chão, ele sabia que seu amor por Amélia não bastava. Não era ingênuo ao ponto de propor mudança. Sabia o que fazia dele, Pedro.
Amélia sempre foi uma mulher discreta, viveu bem ao lado dos filhos. A casa era ponto de encontro dos amigos, por sua abertura. Em silêncio, orgulhava-se de ter apostado em si, no que acreditava: em relações justas, em não compactuar com o machismo, que para além dos homens, sabia que grudava, feito música ruim, no pensamento. Não casou–se novamente e não se sabe que tenha tido outras relações. Pedro zelou pelo filhos, a seu modo, com cuidados com a educação e obrigações com o futuro. Casos não faltaram, seu olhar forte e seu toque - há um só tempo: rude e protetor - sempre agradou às mulheres.
Amélia sente que o tempo mudou, mesmo que o vento ainda seja brisa. Diverte-se com as peripécias amorosas de sua neta. Percebe que daquela mulher, que um dia foi árvore, pouco ficou, restam apenas as folhas. De quem, pouco-a-pouco, desprende-se. Amélia caminha com dificuldade, e lhe resta apenas 20% da visão. Pedro, apesar das noites mal-dormidas, está firme, embora sua visão também esteja prejudicada. Ele também não mora mais sozinho.
Era fim do verão quando Amélia decidiu conversar com seu filho, o mais próximo, dos quatro. A voz serena mascarava o receio, pediu a casa dele emprestada para que se encontrasse com seu pai. O silêncio do filho constrangeu Amélia, e ela questionou: você acha a idéia asquerosa? Ela sempre foi de ouvir e fazer em silêncio. Infelizmente, Amélia não conseguia ver os olhos mareados de seu filho. Benjamim olhava para aquela mulher, alta e forte, mesmo sentada. Ela nunca questionou o porquê dele não querer casar e ter filhos, ou financiar uma casa. Em um tempo em que ser gay, era anormal. E hippie, marginal.
Benjamim, sempre admirou Amélia, mas surpreendeu-se com a mulher à frente, sua mãe, expressando a vontade do seu desejo. Amélia terminou: sinto que precisamos fechar nossa história.
E assim foi, numa casinha escondida em Pinheiros, Amélia e Pedro amaram-se por todo um final de semana. Benjamim chegava fazendo barulho, para repor o que faltava na cozinha. Via os vestígios de seus pais pela casa, ou melhor, pelo quarto e pelo banheiro, como dois adolescentes descobrindo-se, banheiro-quarto-quarto-banheiro. Mas, o único que sabe, além de Amélia e Pedro, o que realmente aconteceu na casinha de vila, é o Abaporu. Que cresceu tanto, que teve que ser abatido, mas está lá, e mesmo estendido no chão, presenciou o tatear desejoso de Amélia e Pedro, que transaram-que-treparam-que-fizeram- amor.

Ps: Como nada é por acaso, ou tudo é puro acaso, Abaporu significa homem que come.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Quando não há palavras

Dia desses, esperando uma amiga no metrô Consolação, fiquei observando um bebezinho. Ele caminhava devagar e seus passos eram graciosamente descoordenados. Sua mãe, suponho, o segurava pela mão. A outra mão ele mantinha levantada, indicando o seu querer - que a outra criança, que estava à frente, a segurasse. Ele não disse nada, talvez não conseguisse, talvez não soubesse como dizer, mas permaneceu com a mão em riste . Muitos passos depois, a outra criança - um menino de uns 4 anos - entendeu seu desejo . Da maneira errada, mas imediatamente o menino segurou a sua mão. A descrição parece boba, mas me fez pensar em tantas coisas que não conseguimos dizer. Somos pequenos diante do que vivemos e ,por vezes, não há palavras para o que sentimos. Para momentos como esses, temos lágrimas, mãos. Corpo. Por isso, nesse momento, fecho meus olhos e estendo minha mão para meu destino. Desejo intensamente que ele me entenda.